Jamil Maluf: “O normal, para os músicos, é estar no palco cativando o público”

Jamil Maluf: “O normal, para os músicos, é estar no palco cativando o público”

PIRACICABA, SETEMBRO DE 2020 - Desde que a pandemia do novo coronavírus se agravou, o setor cultural tem sido um dos mais prejudicados no país. Entre esses trabalhadores da economia criativa estão os músicos e, no caso da cidade, a OSP (Orquestra Sinfônica de Piracicaba), que retornou aos palcos neste sábado (26), mas sem a presença do seu diretor artístico e regente titular, o maestro piracicabano Jamil Maluf.

Por ser do grupo de risco, Jamil, que reside na capital, tem mantido uma rotina rigorosa de distanciamento social. Ao Jornal de Piracicaba, ele manifesta preocupação com elenco da OSP e fala da saudade de sua terra natal e dos impactos sociais e econômicos provocados pela pandemia.

Desde quando o senhor não retorna a Piracicaba?

Estou distante de Piracicaba desde a morte da minha mãe, Talge Maluf, aos 92 anos, em 21 de dezembro do ano passado. Não tive condições de voltar, a data estava próxima do Natal, tive uma série de questões para resolver e depois veio a pandemia.

Como tem lidado com a saudade?

É muito complicado para mim. Morando em São Paulo há várias décadas, o laço com a família sempre foi muito forte. Mesmo quando não estava na OSP, visitava constantemente a cidade. Essa proximidade ficou ainda maior a partir de 2015, com os concertos mensais da orquestra. Costumo me definir como um piracicabano que é apaixonado pela cidade. Sempre fui. Mas, com a pandemia, não há outra forma: existem momentos da vida que só nos cabe aceitar e tentar tirar alguma lição importante do que está acontecendo.

Como tem sido a sua rotina, já que o Theatro Municipal de São Paulo suspendeu a programação até dezembro?

Agora sou forçado a ficar em casa e estou estudando profundamente. Impus uma agenda de estudos de partituras, de obras importantes, algumas que ainda não regi. Uma outra agenda foi assistir a espetáculos importantes ou reassistir coisas do passado, só que desta vez com uma atenção maior. São coisas que têm um grande significado para mim e que me fazem distrair a cabeça. Esse é o único lado positivo da pandemia e era algo que queria fazer há muito tempo, mas que não conseguia por conta da Orquestra Experimental de Repertório, das gravações do programa Intérprete, na Rádio Cultura, ou por estar em Piracicaba com a OSP.

Quais são os impactos da pandemia para os músicos?

É imprescindível que o público, que sempre lotou os concertos, saiba da realidade. O principal impacto é o da sobrevivência. Muitos dos músicos da OSP estão passando por momentos bastante complicados. Como não são funcionários da orquestra, nem celetistas, nem concursados, recebem por apresentação. Como a orquestra ficou parada desde janeiro, os músicos ficaram sem receber. A OSP sempre primou por pagar pontualmente seus compromissos, só que sem apresentação não teve como e essa situação se agravou. Embora alguns músicos toquem em outras orquestras, há profissionais que apenas se dedicam à OSP. Essa fase, para a Sinfônica de Piracicaba, é muito triste.

Muitas pessoas tiveram a renda comprometida. De que forma essa realidade atingiu os integrantes da orquestra?

Atingiu os músicos em cheio. Tivemos músico vendendo instrumento para colocar comida em casa e, no caso da OSP, um violinista está sobrevivendo de apresentações em velório, outros músicos de auxílio emergencial ou tiveram que buscar fontes alternativas de renda, na cozinha ou em outros trabalhos. Acho que a situação funcional dos integrantes da OSP precisa ser reavaliada, em um futuro próximo, não é nem médio e nem distante, para que tenham um pouco mais de garantia em relação ao trabalho. Não estou falando aqui de prestar concurso e fazer músico virar funcionário público, não é nada disso. A orquestra precisaria transformar os seus músicos em celetistas, para que tenham garantias maiores, como um fundo de garantia para caso aconteça algo. Não podemos atrasar mais, teremos prejuízos artísticos na orquestra.

Quais prejuízos um músico tem ao ficar distante dos palcos?

É como tirar o jogador do campo de futebol. O condicionamento físico dele começa a cair. O músico é como um esportista, precisa de disciplina. Se você fica muito tempo sem tocar com sua orquestra, perde um pouco a atenção que sempre teve, já que ela se apresentava todo mês, com obras importantes, e estava tinindo. Mas, acredito que isso com o tempo volte, afinal, temos músicos muito talentosos.

Nestes meses, a OSP buscou alternativas para socorrer os músicos?

Tínhamos a esperança que os músicos pudessem ser remunerados pelas atividades virtuais, como aconteceu com quase a totalidade das orquestras no Brasil e no mundo. O Theatro Municipal de São Paulo, onde eu também trabalho, é um dos exemplos: orquestra, coral e balé estão parados, porém, todos recebem, por levarem o trabalho para a internet. Tentamos fazer desta forma, mas ela não deu. E é trabalho, que requer muito empenho: você gravar uma obra em que cada instrumentista está em casa, depois juntar tudo, sincronizar, fazer a edição.

Você acredita que o trabalho na internet feito pelas orquestras dá resultado?

Sim, e, no nosso caso, o resultado é na divulgação do nome de Piracicaba. Na ocasião dos 253 anos da cidade, a postagem da música Rio de Lágrimas teve mais de 200 mil visualizações, em apenas um fim de semana. Por mais publico que você tenha, não reúne 200 mil pessoas em um teatro. Essa gravação nos mostra o quanto é possível mobilizar a sociedade com a arte. Se tivéssemos condições de ter feito regularmente gravações e postagens desse mesmo nível, de forma que se transformassem em trabalhos artísticos, a projeção para Piracicaba seria muito maior.

Os três projetos pedagógicos com as crianças da rede municipal deixaram de ser realizados?

Sim. E o impacto para as crianças é o mesmo por estarem distantes da sala de aula, do contato com o professor e seus coleguinhas. As visitas que os músicos faziam regularmente pelo projeto Música nas Escolas, os showconcertos do ABC do Dó, Ré, Mi concebidos especialmente para o público infantil no Teatro Dr. Losso Netto, as aulas de violino do Pequena Grande Orquestra: tudo muito bem-sucedido e que teve de ser interrompido, infelizmente, por conta desse vírus. Esses projetos são tão importantes para a OSP quanto os seus concertos. Isso foi deixado muito claro no início, quando levamos a reestruturação ao Executivo. A Secretaria Municipal da Ação Cultural se comprometeu a colaborar na programação artística e a Secretaria de Educação na parte didática, recursos que a OSP complementa com a iniciativa privada, por meio das leis de incentivo fiscal.

O ano de 2020 era carregado das melhores expectativas para a OSP, na comemoração dos 120 anos e inauguração do fosso operístico do Teatro Dr. Losso Netto. Esses planos foram adiados para 2021?

Ainda é uma incógnita. Essa pandemia está sendo cruel com muitas pessoas, mas para os músicos, os artistas de uma maneira geral, é muito difícil. Uma orquestra, por si só, é uma aglomeração. Um público, em um auditório cheio de gente assistindo, é uma aglomeração. A OSP sempre tocou para teatros cheios, então, uma coisa muito boa da orquestra virou uma dificuldade. Os planos de retomada plena só acontecerão quando tivermos uma vacina para a Covid-19 comprovadamente eficaz.

Como avalia o caminho trilhado pela OSP desde 2015?

A OSP trouxe um reconhecimento imenso para a cidade de Piracicaba. São só seis anos do projeto de reestruturação e, nesse período, foram 95 mil pessoas nos concertos, quatro apresentações no Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão e duas na Sala São Paulo. A OSP atraiu a TV Cultura para gravar um dos concertos. A Sinfônica de Piracicaba ajuda a divulgar a cidade e é preciso pensar em seus músicos, da melhor maneira, para ajuda-los a atravessar esse momento.

De que forma esse trabalho tem ecoado?

Ouço das pessoas em São Paulo que a OSP faz milagres. Conquistou um público extraordinário, recebe comentários calorosos nas redes sociais e a repercussão desse trabalho na mídia nacional é constante. Nesse sentido, o apoio dos meios de comunicação é importantíssimo. A imprensa é como um farol: ajuda a abrir os olhos e os ouvidos das pessoas para as coisas boas. Afinal, por mais que existam aparelhos tecnológicos, apreciar uma orquestra no palco é uma emoção inigualável. Torço para que a vacina venha logo, para que tudo volte ao normal. Pois o normal, para os músicos, é estar no palco, com o instrumento afinado, com o ensaio bem feito e cativando o público.

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